sábado, 29 de outubro de 2011

A Ditadura do século XXI - Intervenção Federal na OAB/PA

Nasci no ano de 1989. Não vivi o tão temido período de ditadura, no Brasil. Não posso testemunhar o quão sofrível foi este tempo histórico e como tal, os livros de histórias se encarregavam de ensinar aqueles que não tiveram esse castigo sobre como foi suplicante e vergonhoso para a humanidade registrar momentos de opressão, redução do indivíduo a algo que não pode ser qualificado como humano.

Momentos como este são marcados por densos conflitos e muita luta em prol da liberdade. O homem é um ser condicionado à liberdade, é um ser direcionado a buscar sua liberdade. É da natureza do homem lutar pelas liberdades e reconhecê-las como seu fundamento. Lutas como estas lamentavelmente e não raro terminavam por banhar o chão da liberdade com o sangue dos guerreiros. Outro ponto marcante desta batalha era que, para conter a legitimidade democrática, constantes golpes políticos eram articulados, de modo a funcionar como um mecanismo de controle social para a garantia da estabilidade das posições de poder de seus ocupantes.

Algo que sempre me motivou na carreira jurídica é justamente a resistência civil a práticas anti-democráticas, cruéis, desumanas, covardes e ilegítimas que aconteciam, nos tempos de ditadura. Maior vigor eu tomava quando tinha como referência a luta da Ordem dos Advogados do Brasil contra esse regime. A OAB sempre foi reconhecida como uma entidade de defesa social, de garantia democrática e de respeito a estes preceitos e fez frente ao regime para que o mesmo padecesse sob o poder democrático do povo. A OAB é, para mim, um símbolo em defesa da justiça e da liberdade. Exemplo de coragem. Sempre enxerguei na figura do Advogado um guerreiro, sempre pronto a defender com o maior vigor e honra todos os preceitos fundantes de uma sociedade digna, humana e democrática. É inconcebível e incoerente qualquer forma de imposição de um interesse não democrático por parte deste órgão que tanto nos enche de orgulho quando assume seu papel.

Na minha ingenuidade, imaginava nunca vivenciar tempos de ditadura. Tempos que me fizessem ter vergonha de pertencer à sociedade. Essa ingenuidade caiu por terra quando descobria os resquícios de ditadura em nossa legislação que, mesmo em completa dissonância com a Constituição da República, vêem-se indiscriminadamente sendo aplicados. O direito penal e processual penal é uma das maiores contaminações, do passado, que temos, hoje. Mas me assusta muito quando ainda esses restos de totalitarismo são observados dentro de entidades que tanto lutaram contra os mesmos.

Trata-se de um grande paradoxo da transição democrática. Um lamentável exemplo disso é a recente decisão do Conselho Federal da OAB que determinou a intervenção no Conselho Seccional do Estado do Pará. Primeiramente, muito me enojava e envergonhava acompanhar um intenso golpe, com o mesmo instrumento ditatorial que se fez valer a ditadura, acompanhado de um processo repleto de ilegalidades e com um caráter eminentemente político, que se instalou para que tal intervenção fosse aplicada. O criador se transformou na criatura e a criatura no criador. Isso é algo de causar a implosão de qualquer sistema lógico.

Os Coronéis chegarão ao Pará sem ter o que corrigir e sem ter o que melhorar. Pelo contrário, sua presença será a causa do maior abalo que a instituição já sofreu. Os heróis são transformados em inimigos públicos por terem lutado por uma sociedade democrática, proba, não corrompida, ética, moral, impessoal, pública e eficiente.

Isso pode passar a impressão de que meus sonhos em relação à Advocacia se tornaram pesadelos, traumas e que possa desistir dos mesmos. Quem acreditar nisso terá uma drástica ilusão, pois isso tudo apenas me motiva, dá-me forças, torna-me sagas no intuito de me unir aos guerreiros e mostrar que a democracia substancial jamais sucumbirá perante a covardia de um golpe. Sou humano e sujeito a erros e precipitações, maus julgamentos e fadado ao reconhecimento de qualquer ato falho...porém, algo que não me pertence e que jamais permitirei ser o norte de minhas condutas é o crime dos covardes: a omissão!

Por isso, sei que a verdadeira OAB/PA se erguerá destes dias inglórios para, mais uma vez, assumir e sacramentar seu papel na defesa da sociedade. A verdadeira OAB/PA, ao final deste episódio, será ovacionada pela vitória da democracia sobre a ditadura, de uma vez por todas, inaugurando uma nova era. Uma era em que não se tolerará mais que abusos como este sejam perpetrados e mostrará à sociedade o que é ser Advogado.

domingo, 4 de setembro de 2011

Como treinar seu dragão

Alguém já assistiu ao filme "como treinar o seu dragão"...é eu sei que é um desenho. tenho que admitir que gosto de assistir um desenho, principalmente quando o filme ensina alguma coisa, muitas vezes, bem mais que uma mega produção cinematográfica com atores de verdade...

O que me chama a atenção nesse filme, em especial, é que ele mostra que quando não conhecemos alguma coisa, a tendência é querer eliminá-la...as pessoas costumam ser assim, quando não sabem resolver um problema acabam deixando aflorar seus instintos de extermínio...

No filme, o jovem ensina a todos que é preciso conhecer aquilo com o que se está lidando...o sistema penal funciona assim...como não se sabe lidar com pessoas, como não se sabe fazer políticas públicas de desenvolvimento, o jeito mais fácil é eliminar, como se estivéssemos todos lutando contra dragões...o problema é que nós não somos dragões.

Quem puder, assista ao filme!

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Prisão preventiva para o furto? nunca mais...

Vários pontos da Lei 12.403 chamam a atenção, porém, uns mais do que outros. Vou reservar um espaço, hoje, para falar da parte da lei que trouxe significativas mudanças benéficas ao sistema, haja vista que a maior parte dela acabará sendo prejudicial e não cumprirá com as expectativas do CNJ de redução da população carcerária, mas isso é cena para o próximo capítulo dessa novela, que promete ser longa.

A primeira das grandes mudanças diz respeito ao que me atrevo a chamar de um piso mínimo de gravidade de crime para que se possa cogitar a possibilidade de prisão processual que, para "surpresa" de muitos, é a exceção. Estou falando da nova redação do artigo 313, inciso I, que vedou a prisão preventiva para crimes cuja a pena não ultrapasse os quatro anos de prisão, em abstrato.

Temos, finalmente, o reconhecimento por parte do legislador que existem crimes e crimes. Quando se fala de tutela penal, pensa-se logo em prisão. Só que está é a última das consequências, pois, de acordo com o discurso oficial, o direito penal serve a proteção dos bens jurídicos mais importantes e o extremo de resposta estatal é a segregação, a privação da liberdade.

Ocorre que o direito penal não responde as condutas apenas com a imposição de pena de prisão, o instituto da substituição penal, as famosas penas alternativas, são uma realidade cada vez mais presentes, justamente por reconhecer que a prisão, falida aos preceitos oficiais, não pode ser aplicada a todos indiscriminadamente e que existe uma categoria de tipos penais que merecem uma resposta penal mais proporcional com a lesividade do bem jurídico.

Para esses tipos penais que não receberão uma pena de prisão, ao final do processo, ou seja, com sentença penal condenatória com trânsito em julgado (sim...fiz questão de ser repetitivo), há muito já se entendia que não eram sujeitos a segregação cautelar, pois o instrumento processual jamais poderia ser mais severo do que a pena.

A verdade é que muitos juízes se utilizam da prisão cautelar como uma antecipação de pena insdiscriminadamente. Isso ocorre pelo fato de esses ditos juízes não terem sido apresentados a princípios como fonte jurídica maior que a regra e norteadora da mesma e, também, a uma tal de Constituição. Mesmo depois de mais de vinte anos esta ainda parece desconhecida. Então, finalmente, o legislador tomou uma postura ativa contra essa prática.

Como a letra fria e morta da lei é a única coisa que muitos conhecem, então é nela que a gente vai atacar. Assim, foi alterada a redação do artigo 313, inciso I do CPP, de modo a vedar expressamente a prisão preventiva para crimes cuja lesividade pequena não alcançaram a prisão como pena e vale mais assumir os riscos do tumulto processual do que aplicar pena a quem a conduta não o fez por merecer, falando em um plano objetivo.

Agora, aqueles que ignoravam a Constituição terão a lei contra sua vontade incontrolável de infligir sofrimento desmesurado. Fato curioso que só vem a corroborar essa postura anti-Constituição é que a lei tornou expresso que "a partir de agora" toda decisão judicial deverá ser fundamentada. Legal, agora que está na lei, quem sabe...mas, eu podia jurar que já tinha ouvido isso antes...um tal de artigo 93, IX da Constituição....

É...a lei trouxe novidades interessantes...mas nem tudo, ou melhor, quase nada. Enquanto isso a gente vai lutando nesses 60 dias de vacância para fazer entender que no que for benéfico o vigor da lei é IMEDIATO...mas quem liga, não é mesmo?

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Lei 12.403 - Reforma no CPP

Já foi sancionada pela Presidente da República a lei 12.403 que altera consideravelmente a parte do Código de Processo Penal referente as prisões processuais e outras medidas cautelares. Avanço ou retrocesso? Maiores considerações, em breve.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Denunciantes invejosos

Já tem tempos que queria publicar este trabalho. Então, segue uma decisão sobre o caso dos Denunciantes Invejosos, feita por mim, obviamente, não judicial e meramente acadêmica. Trata-se de um excelente caso para se discutir justiça de transição.

Segue a decisão:

Relatório

Uma nação de aproximadamente vinte milhões de habitantes, que vivia sob a égide de um Estado Democrático de Direito, em determinado período, viu-se acometida de uma profunda crise econômica e por graves conflitos entre grupos que seguiam diferentes linhas econômicas, políticas e religiosas.

Surgiu como a figura do salvador da pátria o chefe de um partido ou sociedade que se autodenominava “camisas-púrpuras”, que ascendeu ao poder por meio de uma disputa eleitoral, que, apesar de marcada por sérios conflitos e irregularidades, culminou com esse chefe eleito Presidente da República e seu partido obtendo a maioria das vagas na Assembléia Nacional.

Não foi alterada a Constituição, nem os Códigos Civil, Penal e Processuais e os funcionários públicos foram todos mantidos em seus cargos. Apesar disso, o país vivia sob regime de terror. Interpretações perniciosas passaram a ser dadas ao Código Penal, devido ao medo que tinham os magistrados de represálias dos “camisas-púrpuras”. Também foram editadas leis que criminalizavam retroativamente determinados comportamentos plenamente legais, anteriormente.

O governo dos “camisas-púrpuras” não respeitavam as obrigações impostas pela Constituição, pelas antigas leis ou mesmo por suas próprias leis.

Agora, com a derrota dos “camisas-púrpuras”, estabeleceu-e novamente um governo democrático e constitucional.

Porém, ainda sob o antigo regime, muitíssimas pessoas, movidas por inveja, denunciaram seus inimigos pessoais ao partido ou a autoridades governamentais, por condutas que, hoje, e antes da era dos “camisas-púrpuras” são consideradas de baixíssima significância, que resultavam em pena capital.

Com a derrota dos “camisas-púrpuras”, formou-se um movimento de opiniões que exigiu a punição dos Denunciantes Invejosos. Cinco Deputados foram Consultados para apresentarem sua opinião.

O primeiro Deputado se manifestou argüindo que as denúncia versavam sobre fatos que realmente eram ilícitos, isto é, contrários às regras estabelecidas pelo governo que, nessa época, exercia o poder do Estado. As sentenças de condenação das vítimas dessas denúncias foram pronunciadas em conformidade com os princípios legais então vigentes. Uma das principais diferenças entre o direito dos “camisas-púrpuras” e o atual está justamente no fato de que o nosso reconhece ao juiz um poder discricionário muito menor no âmbito penal. Os “camisas-púrpuras” simplesmente descumpriram as leis com as quais não estavam de acordo e nem mesmo se deram ao trabalho de revogá-las. Se fosse tentado fazer uma triagem entre os atos desse regime, anulando determinados julgamentos, invalidando certas leis ou considerando como produto de abuso de poder algumas condenações, estaríamos fazendo exatamente aquilo que mais rejeitamos na atuação dos “camisas-púrpuras”. Portanto, os Denunciantes Invejosos não deveriam ser punidos e esse seria o caminho que faria triunfar, a longo prazo, as concepções sobre direito e governo nas quais se acredita, hoje.

O segundo Deputado se manifestou argüindo que concorda com primeiro, no sentido de que os Denunciantes Invejosos não devem ser punidos, porém, chega a esta conclusão por caminho diverso. Aduz que não se pode considerar os “camisas-púrpuras” como governo legal, pois este pressupõe a existência de leis que sejam conhecidas ou pelo menos possam ser conhecidas pelos seus destinatários, uniformidade na atuação e ausência de poderes atuando fora da lei. Quando os “camisas-púrpuras conquistaram o poder, deixou de existir o direito, independentemente da definição que será dada a este termo. Durante esse regime teria ocorrido uma suspensão do Estado de Direito. Houve uma guerra de todos contra todos, feita a portas fechadas. Os atos dos Denunciantes Invejosos nada mais eram do que uma fase dessa guerra. Condenar tais atos seria uma tentativa de avaliar juridicamente a luta pela sobrevivência na selva ou no oceano.

O terceiro Deputado se manifestou no sentido de não admitir que o regime dos “camisas-púrpuras” estava completamente fora da lei, nem considerar que todos os seus atos merecem ser classificados como atos de um governo respeitoso da lei. Observando o duramente o regime, percebe-se que não tínhamos uma “guerra de todos contra todos”. Muitos dos atos da vida cotidiana continuavam a ser realizados, tais como casamentos, contratos e etc. A vida normal enfrentava os habituais contratempos, não afetados pelo regime dos “camisas-púrpuras”. Se quiséssemos declarar como privado de fundamento legal e nulo tudo aquilo que ocorreu sob o regime dos “camisas-púrpuras”, criaríamos um caos intolerável. Por outro lado, não se pode conceber como legais os assassinatos cometidos sob ordens do chefe do partido, simplesmente porque este conseguiu controlar plenamente o governo. Por essa razão, devem ser feitas algumas distinções, como acontece na maioria dos problemas sociais. Devemos intervir nos casos em que a filosofia dos “camisas-púrpuras” penetrou na administração da justiça, afastando-a de suas finalidades e procedimentos habituais, pois há casos em que foram feitas denúncias com o intuito de se ver livre do denunciado e outros de pura subserviência ao governo. Desse modo, deveriam ser punidos os Deunciantes invejosos.

O quarto Deputado também se manifestou no sentido que as reflexões trazidas pelo Deputado anterior não podem ser vista de uma forma tão simplória. Se fosse adotado tal forma de pensamento estaríamos tomando exatamente as mesmas atitudes que tomaram os “camisas-púrpuras” diante das leis e atos do governo que os precedeu. O governo atual defende a idéia de conformidade com normas jurídicas devidamente editadas. Isso significa criar uma lei voltada para o tratamento da questão. Dessa forma, não seria necessário aplicar leis a assuntos que elas não pretenderam tratar. Deve se estabelecer penalidades apropriadas para as infrações cometidas pelos Denunciantes invejosos e não tratá-los indiscriminadamente como assassinos, pelo único motivo de que a vítima foi executada após uma condenação criminal.

O quinto Deputado encerra a exposição das propostas considerando que a resposta dada pelo quarto Deputado constitui um dos mais odiosos procedimentos do regime dos “camisas-púrpuras”, ou seja, a edição de leis penais retroativas. Argúi, portanto, que deveria se permitir que se manifeste o instinto humano vingança. Há períodos históricos nos quais deve ser permitido que esse instinto se exprima diretamente, sem a mediação das formas jurídicas. O atual governo e o sistema jurídico não serão envolvidos, mesmos nos casos de eventuais ataques a inocentes.

Assim, discute-se se seria legítima a punição dos Denunciantes Invejosos, frente a um governo democrático e constitucional, em um Estado Democrático de Direito, tratando de fatos ocorridos em um período anterior de negação desse Estado.

Decisão

Quanto a alegação do segundo Deputado de que com a ascensão dos “camisas-púrpuras” ao poder deixou de existir o direito, independentemente da definição que será dada a este termo, entendo que a mesma não merece prosperar.

O fato de um ordenamento vigente ou a sua negação e a fixação de uma forma de exercício da norma ser oposta ao entendimento do que é direito para uma determinada concepção não significa dizer que a outra maneira de ver o direito a desconstitua desse substrato. A própria alegação do Deputado corrobora tal afirmação, pois o mesmo torna claro a possibilidade de se atribuir definições diversas a um termo.

De acordo com o entendimento de Hans Kelsen, em sua Teoria Pura do Direito, “com o termo ‘norma’ se quer significar que algo deve ser ou acontecer, especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira”. Então, por mais odiosa que possa ser a ideologia dos “camisas-púrpuras” não se pode negar o fato de que estes produziam normas jurídicas, pois determinavam comportamentos por meio de instrumentos normativos. Ainda que não sejam consideradas justas as leis, respeitado seu processo legislativo, ela é válida, até que seja devidamente revogada.

Não podemos conceber a ocorrência de uma guerra de todos contra todos, pois este estado de sociedade pressupõe conseqüências auto-destrutivas que não se observou, como bem observou o terceiro Deputado. Considerar os atos dos Denunciantes Invejosos como fases dessa guerra é completamente espúrio, pois jamais se pode considerar tais atos como uma reprodução de um estado de sobrevivência observável em uma selva ou oceano, onde a morte é indispensável para se alcançar a vida. Fato mais incabível é tentar valorar tal argumentação juridicamente.

A proposta do terceiro Deputado de que não se pode admitir que o regime dos “camisas-púrpuras” estava completamente fora da lei, nem considerar que todos os seus atos merecem ser classificados como atos de um governo respeitoso da lei, sob a égide de meu entendimento, também não pode prosperar. Se não, vejamos, Kelsen assevera:

“Como a vigência da norma pertence à ordem do dever-ser, e não à ordem do ser, deve também distinguir-se a vigência da norma da sua eficácia, isto é, do fato real de ela ser efetivamente aplicada e observada, da circunstância de uma conduta humana aplicada e observada, da circunstância de uma conduta humana conforme à norma se verificar na ordem dos fatos. Dizer que uma norma vale (é vigente) traduz algo diferente do que se diz quando se afirma que ela é efetivamente aplicada e respeitada, se bem que entre vigência e eficácia possa existir uma certa conexão. Uma norma jurídica é considerada como objetivamente válida apenas quando a conduta humana que ela regula lhe corresponde efetivamente, pelo menos numa certa medida. Uma norma que nunca e em parte alguma é aplicada e respeitada, isto é, uma norma que – como costuma dizer-se – não é eficaz em uma certa medida, não será considerada como norma válida (vigente). Um mínimo de eficácia (como sói dizer-se) é a condição da sua vigência.”

Nessa perspectiva, entendo pertinente a afirmação do segundo Deputado ao dizer que durante o regime dos “camisas-púrpuras” teria ocorrido uma suspensão do Estado de Direito. Devemos observar que tal regime assumiu o poder de forma legítima, por meio democrático. Durante sua hegemonia, o antigo ordenamento jurídico, por mais que formalmente vigente, carecia completamente de eficácia e se estabilizou o ordenamento jurídico perpetrado pelos “camisas-púrpuras”. Não importa se suas ações eram contrárias a norma forma, pois as ações eram condizentes com o ordenamento vigente à época. Dessa forma, jamais poderia se falar em punibilidade dos Denunciantes Invejosos, que perpetravam suas ações de acordo com a lei vigente, nessa baila.

Como bem asseverou o Deputado, a vida normal enfrentava os habituais contratempos, não afetados pelo regime dos “camisas-púrpuras”. Declarar privado de fundamento legal e nulo de tudo aquilo que ocorreu sob o regime dos “camisas-púrpuras”, inevitavelmente cairíamos em um caos intolerável, como ressaltou o parlamentar, pois passaríamos a ter uma imensidão imensurável de situações jurídicas indeterminadas e indetermináveis, com tal ato. Desse modo, não se pode conceber que o ordenamento dos camisas púrpuras seja ilegítimo.

Por fim, propõe o Deputado que devemos intervir nos casos em que a filosofia dos “camisas-púrpuras” penetrou na administração da justiça, afastando-a de suas finalidades e procedimentos habituais, pois haveria casos em que foram feitas denúncias com o intuito de se ver livre do denunciado e outros de pura subserviência ao governo. Assim, poderiam ser punidos alguns dos Denunciantes Invejosos.

Essa proposição é completamente descabida por ser a aplicação de um Direito Penal de Autor, que culmina na consolidação do Direito Penal do Inimigo. Escolher sobre quem recai a norma é dizer que a mesma não se aplica a todos os indivíduos, o que contraria seu caráter geral. Os critérios de seleção sobre quem vai recair o poder de punir são completamente arbitrários e despóticos, incompatível com um Estado Democrático de Direito, que limita a vingança institucional do Estado, para trazer racionalidade ao direito de punir, dando a ele uma finalidade social.

Definir os Denunciantes Invejosos como passíveis de punição, por conta do sentimento de revolta e desprezo que se tem pela filosofia dos “camisas-púrpuras” é retirar desses indivíduos a qualidade de pessoa e fazer com eles o que bom grado for necessário para se satisfazer o sentimento de vingança. Na esteira de Eugênio Raul Zaffaroni, em sua obra O Inimigo no Direito Penal, transcreve-se:

“Nossa tese é que o inimigo da sociedade ou estranho, quer dizer, o ser humano considerado como ente perigoso ou daninho e não como pessoa com autonomia ética, de acordo com a teoria política, só é compatível com um modo de Estado absoluto e que, conseqüentemente, as concessões do penalismo têm sido, definitivamente, obstáculos absolutistas que a doutrina penal colocou como pedras no caminho da realização dos Estados constitucionais de direito.” (página 12).

Selecionar quais os Denunciantes poderiam sofrer punição é tomar as vezes do processo de criminalização secundária, que utilizará de critérios escusos para delimitar o alcance jurídico da norma, ou melhor do sujeito. Nesta baila, inconcebível é a punição dos Denunciantes Invejosos, por completa afronta ao Estado Democrático de Direito vigente.

O quarto Deputado propõe que sejam editadas novas leis para estipular o tratamento adequado aos Denunciantes Invejosos, pois o atual governo defende a idéia de conformidade com normas jurídicas devidamente editadas. Ocorre que a proposta é legislar retroativamente em matéria penal, o que é completamente inconcebível em um Estado Democrático de Direito. Para que se possa exigir de um sujeito que se comporte de acordo com a norma, ela precisa ser anterior a sua conduta. Trata-se de uma questão lógica, pois o mesmo sujeito jamais teria como se comportar de acordo com uma norma que não existia. Não se pode querer punir o comportamento de quem agia sob o manto da legalidade.

Leis penais retroativas é exatamente o que o governo absoluto dos “camisas-púrpuras” fazia e que não é aceitável em hipótese alguma, no atual ordenamento jurídico. Por esta razão, a proposta do Deputado deve ser rejeitada.

O quinto e último Deputado se manifesta no sentido de se permitir, ou fechar os olhos, para as práticas de vingança privada, sem a mediação das formas jurídicas. Ainda na linha do pensamento de Zaffaroni, transcreve-se:

“(...) A concepção linear do tempo está intimamente vinculada à vingança, a ponto de depender dela: a vingança é sempre vingança contra o tempo, dado que não é possível, numa concepção linear, fazer com que o que foi não tenha sido. A vingança é contra o que foi e já não pode ser de outro modo ou voltar a ser. O humano é prisioneiro do tempo e do seu ‘foi’. A vingança é uma necessidade da concepção linear do tempo.” (página 42).

Assim, tem-se que a vingança é a forma de se tentar resgatar o que não pode ser resgatado. O fato consumado jamais poderá ser reproduzido, pois, estando no passado, jamais será alcançado.

O direito de punir do Estado surgiu justamente para acabar com a vingança privada. Transferiu-se para as mãos de uma instituição o poder de simbolizar a tentativa de reconstituir o passado, pelo uso da pena. As barbáries produzidas pela vingança privada, em um constante e interminável ciclo vicioso apenas reproduziam mais violência e o conflito nunca cessava. Assim aduz Thiago Fabres de Carvalho:

“É preciosa a advertência de François Ost no sentido de que a mesma forma que é impossível atingir-se um ponto zero do direito, vez eu toda juridicidade pressupõe um plano de interação e de reconhecimento intersubjetivo prévio, poderíamos defender: ‘há crime antes do crime’. Sendo assim, ‘o crime que a vingança pune, explica René Girard, ‘quase nunca se concebe a si mesmo com primeiro; pretende ser já vingança de um crime original’. Assim, os homens terão sido sempre já confrontados com a violência; existe um futuro anterior do mal, como existe um futuro anterior da legitimidade”. Por essa razão, ‘a esta anterioridade do crime responde a perenidade da memória punitiva; se não a sua perenidade, pois no universo moderno intervém a prescrição, pelo menos a sua longa duração. Punir é, pois, antes do mais recordar” (página 130).

Dessa maneira, a vingança privada não pode mais ser concebida, pois sempre teria alguém para vingar outrem e estaríamos diante de um ciclo vicioso e infinito. É preciso por um termo final a vingança, como aduz Thiago Fabres de Carvalho:

“Nesse sentido, promover a superação da vingança cega e mortífera, por meio de um conteúdo ético da vinditta, constitui tarefa decisiva para retirar da pena a sua carga de violência destruidora. A recuperação do conteúdo ético da vingança, promovendo a recuperação da dignidade da vítima e de seu algoz, representa uma importante mudança de paradigma, no sentido de articular um novo horizonte de sentido para a sanção penal.” (página 160).

Por tais motivos a vingança não pode estar nas mãos do particular e cabe sim ao Estado aplicá-la de forma mais ética e prudente possível. Nessa linha, vem ainda o Estado Democrático de Direito como um limitador as ânsias do agente estatal para que não exceda o limite da legalidade no exercício do direito de punir.

Assim sendo, resta como digno de acatamento a proposta trazida pelo primeiro Deputado de que as denúncias versavam sobre fatos que realmente eram ilícitos, isto é, contrários às regras estabelecidas pelo governo que, nessa época, exercia o poder do Estado. As sentença de condenação dos denunciados foram pronunciadas em conformidade com os princípios legais então vigentes. Isso se dá por conta do entendimento kelseniano supra exposto que tornou sem vigência o ordenamento do governo anterior que, apesar de formalmente vigente, carecia de eficácia jurídica, portanto, teve sua vigência suspensa, como colocou o Deputado.

Não se pode querer reprovar penalmente as condutas que eram legalmente permitidas e exigidas à época. Querer punir os denunciantes invejosos é aceitar a frustração de não poder punir os “camisas-púrpuras” e extravasar o ódio sentido por eles sobre aqueles que não representam o problema, atacando o lado fraco, como forma simbólica de demonstração de força.

Por todo o exposto, deve ser acatado o entendimento do primeiro Deputado e não devem ser atribuída responsabilização penal aos Denunciantes invejosos.

Referência Bibliográfica

KELSEN,Hans. Teoria pura do direito. Ed 6. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

MORAIS DA ROSA, Alexandre; CARVALHO, Thiago Fabres. Processo penal eficiente e ética da vingança: em busca de uma criminologia da não violência. Ed 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

ZAFFARONI, Eugênio Raul. O inimigo no direito penal. Ed 2. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Jornada de Ciências Criminais

A Jornada de Ciências Criminais é um evento do Grupo Amazônico de Estudos Criminais Críticos, que conta com pesquisadores das ciências criminais, do Estado do Pará.

Maiores informações: 8845-7296 (Antonio)

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Direito (ou respeito?) a vida!

O Conselho Federal de Medicina não apenas deixou de desaprovar como regulamentou a prática de ortotanásia. Na Resolução 1.805/2006, o Conselho já considerava como não sendo falta ética esta prática. Diz a letra da norma:

“Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.”

A Justiça Federal, no início do mês de Dezembro, revogou a liminar que suspendia os efeitos da Resolução acima, tornando lícito aos médicos praticarem este ato de respeito a vontade do paciente.

Agora, permitir ao paciente o direito de escolha é garantir o direito a vida? A vida deve ser plena ou digna? Pode alguém dispor de bem jurídico alheio dessa magnitude?

Apesar do estado psicológico extremamente comprometido e de vários casos de pessoas que inicialmente desejavam interromper seus tratamentos e devido a insistência da equipe médica, hoje, estão curadas e agradecidas pelo gesto, acredito que a decisão final deve sempre caber ao titular do bem.

É dever de todos proteger a vida, mas será que não podemos dispor da nossa? Novos pensamentos estão surgindo, paradigmas sendo quebrados...o que será que teremos a seguir?

Mais informações, leia aqui.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Mais uma vez, e as chuvas, será que são elas?

A novela se repete. A tragédia, no Rio de Janeiro, devido as proporções, tenha despertado traumaticamente a atenção da população e governantes. Enquanto isso, aqui em Belém, as ruas continuam alagadas, famílias ilhadas em suas casas, prejuízos demasiados e o problema não é nenhuma novidade.

Mas aí, pergunta-se: de quem é a culpa? Adianta responsabilizar o Santo? Não dá, né!

A verdade é que não dá mais pra continuar dessa de abandonar as pessoas ao acaso e a sorte para se proteger da falta de responsabilidade do poder público que não presta a infraestrutura necessária e de si mesmo, pois os lixos continuam sendo jogados na rua, bueiros e tudo continua a transbordar.

Não dá mais para nossa cidade competir arduamente no ranking de umas das piores cidades brasileiras, em termos de moradias, pois a quantidade de pessoas morando em condições subumanas é ridiculamente desesperador. O processo de urbanização descontrolado e desenfreado precisa da atenção dos governantes. Corro o risco de ficar repetitivo em falar que precisamos de obras de infraestrutura, saneamento básico, coisas fundamentais para o convívio urbano. Mas, se o noticiário tem licença para dar a mesma notícia, todos os dias, pois todos os dias elas se repetem, continuarei a ser repetitivo, também.

E enquanto isso, ocupações desordenadas, condições degradantes de (sobre)vivência se comportam como um catalizador de nossos índices de criminalidade, pois o sistema é fechado e autopoiético.

Não adiante esvaziar as prateleiras das lojas se a fábrica continua a todo o vapor!


quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Reforma do CPP - Breves considerações

Enfim, volto as atividades, aqui do blog. Esse tempo afastado das postagens serviu para muitas reflexões e inspiração para muitas discussões entre os amigos, neste espaço de debates. Preciso fazer justiça e dedicar essa primeira postagem de 2011 a pessoa que muito me incentivou a retornar com as postagens e que atualmente é minha maior fonte de inspiração para tudo o que faço. Nanda, você roubou meu coração e, agora, está condenada a me aturar por tempo indeterminado...essa postagem é para você.

Muito se tem discutido, comentado e publicado acerca do projeto do novo código de processo penal. A necessidade de uma renovação legislativa é desesperadoramente imperiosa. Temos em pleno vigor um código escrito em 1941, com influencias facistas a flor da pele e que, pelo menos, desde 1988, não pode mais continuar a ditar os rumos do processo penal.

Essa fato deu origem a um série de retalhos, ao longo desses mais de 20 anos, porém, ainda não conseguimos abandonar as influencias de um direito penal de controle, inserida no procedimento do CPP de 1941. Agora, sim, teremos uma reforma de verdade. Muita coisa será alterada. Três considerações, neste momento, merecem reflexão.

A primeira diz respeito ao plano de fundo das mudanças. O judiciário completamente abarrotado de processos pendentes de julgamento e a necessidade de uma resposta em tempo razoável, exigida não só pela sociedade como pela própria Constituição da República. Isso fez com que a comissão de reforma fizesse alterações de procedimentos e, principalmente, no âmbito recursal com o intuito de deixar o processo mais célere.

Realmente, o processo precisa ser mais célere. Contudo, isso não pode ser justificativa para se atropelar direitos e garantias fundamentais. A influência de Posner e a Escola de Chicago, trazendo o princípio da eficiência para dentro do ordenamento jurídico deve ser analisada com muita cautela. Trata-se de uma doutrina puramente econômica que tenta tornar o direito como servente à economia. Para a Escola de Chicago, a morosidade do judiciário é prejudicial à economia, pois afasta investidores que vêem o tempo das possíveis demandas judiciais como fator negativo a se inserir em um mercado que possui um judiciário lento.

A bem da verdade, são corretos os estudos dos impactos que o direito pode te sobre a economia. Porém, não se pode esquecer que o direito serve à sociedade e não à economia. A influencia de um capitalismo selvagem, infelizmente, apesar de trazer os benefícios tecnológicos, acaba devorando aqueles que não conseguem acompanhar o ritmo do mercado e quem não consegue se tornar consumidor acaba relegado a margem da sociedade de consumo, tornando-se esquecidos, muitas vezes, pelo próprio Estado, distanciando-se completamente do direito a dignidade humana que garante a Carta Maior.

O equilíbrio entre a economia e o direito é que deve ser perpetrado e não sucumbir ao outro. Processo Penal eficiente? Não, obrigado! Como bem diria Alexandre Morais da Rosa. Eficiência, no processo penal, significa não respeitar garantias constitucionais. Devemos, sim, dar mais atenção a eficácia do processo, em tempo razoável, tanto para a sociedade quanto, principalmente, para o réu, pois não podemos esquecer que se trata de uma relação entre poder de punir estatal, por meio de suas agências executivas, e o indivíduo.

Outro ponto que merece destaque é a inserção de limite temporal para a prisão preventiva. Atualmente, não há limitação, ao menos expressa, para a prisão preventiva, o que faz com que tenhamos um contingente exageradamente superlotado nas carceragens brasileiras, chegando a ter um percentual de 60%, no estado do Pará, de presos provisórios, compondo a população carcerária. Ao menos, antes do mutirão realizado pelo CNJ.

Trazer racionalidade as prisões cautelares é algo que se mostra essencialmente necessário, haja vista que a discrepância a aplicação descontrolada da mesma por parte de magistrados escudados na inconstitucional possibilidade legal de garantir a ordem pública. Fato curioso é que isso fará com que mais mitigado fique o instituto da fiança.

A fiança, que nasceu para excepcionar a prisão processual, que anteriormente era a regra, deve seu primeiro sintoma de falência com o advento do artigo 310, parágrafo único do atual Código de Processo Penal, onde possibilitou a concessão da liberdade provisória a todos os acusados em que não esteja presente a cautelaridade, independentemente se tratar de crime afiançável ou não.

Uma última relexão se faz em relação ao interrogatório por videoconferência. Este que, aparentemente, seria uma inovação positiva ao réu e ao processo é atentatório ao direito de defesa do acusado que, resumidamente, tem seu direito a entrevista reservada com seu defensor prejudicado, a possibilidade orientá-lo em relação aos fatos ocorridos em audiência, o risco de estar sendo constrangido por trás das câmeras. Os réus que usufruem dos serviços da Defensoria Pública serão os mais prejudicados, pois não podem pagar uma equipe de Advogados que possa disponibilizar um defensor para estar ao seu lado, na casa prisional, e outro na sala de audiência. Mas este tema, pela sua complexidade, merece uma postagem própria, que virá em um futuro breve.

Enquanto isso, vamos discutindo...