segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

O ladrão de cadeado!

Em meio a algumas tarefas domésticas, preparativos para um almoço em família, minha tranquilidade foi inquietada por um barulho, que para muitos é apavorante, uma sirene de uma viatura de Polícia. Quando olhei pela janela que estava imediatamente à minha frente, nada pude ver. Como foi um efeito sonoro que muitas vezes é utilizado pelos policiais no lugar das buzinas, deixei de lado. Mas, após ouvir alguns comentários, resolvi trocar de janela. A cena que vi foi um tanto quanto peculiar, que me causou surpresa. Um policial abraçava um homem, sem camisa, na rua, como quem estivesse confraternizando, parabenizando. Não conseguia entender muito bem o que aquilo representava, pois minha primeira previsão não era muito boa, já que quando se ouve a polícia chegando penso logo na sua atuação nada de acordo com o protocolo e nos graves danos que acabam gerando. Ato contínuo, surgiu uma mulher, que correu para os braços daquele homem, abraçando-o, como quem afagava uma pessoa que acabava de retornar de uma guerra. Não podia ouvir a conversa, mas o semblante do homem era de quem queria dizer: sobrevivi e, ao mesmo tempo reverenciando a autoridade, dizendo que apenas cumprira com o seu dever.
Após verificar o sistema oficial de informações, o porteiro do prédio, que esteve o tempo todo postado na calçada, assistindo aquele episódio, descobri que um "crime" teria acontecido. O agente estava dentro da viatura, mais precisamente no compartimento originariamente destinado ao porte de malas, adaptado há um pretenso camburão. Aquele homem que o policial abraçava foi a pessoa quem impediu a consumação do fato. Foi quem pegou o cara. O crime cometido: "roubar" um cadeado. É isso mesmo, você não está com problemas de leitura. O objeto material é CADEADO, desses de fechar qualquer coisa.
Depois de termos construído todo este cenário, vejamos o que o Direito Penal guarda para nosso SELECIONADO. E a resposta é: NADA. É isso mesmo. Nada. Mas por que?
O sistema penal, compreendido por todas as agências envolvidas na aplicação da lei penal, desde a polícia até os agentes carcerários, encontra-se em uma profunda crise de legitimidade. A forma com que o o sistema penal atual se comporta faz com que o mesmo seja, ou ao menos deveria ser, impedido de que fosse aplicado, no que tange a penas privativas de liberdade, em muitos casos. O direito penal traz em seu slogan um discursso oficial que não condiz com a realidade. O direito penal como ramo da ciência jurídica que protege os bens jurídicos mais relevantes é suplantado pelo discursso real de instrumento de controle por parte do poder. "A 'perda das penas', como inflição de dor sem sentido ('perdido' no sentido de carentes de racionalidade) (ZAFFARONI) não pode subsistir frente a um direito penal constitucional. Isso porque o direito penal vem sido usado como um método de garanitr a "egemonia do Imperador no exercício arbitrário de suas razões". "O discurso jurídico-penal seria racional se fosse coerente e verdadeiro" (ZAFFARONI), no sentido de que não esquecesse suas premissas. Essas que se compreendem por direitos e garantias fundamentais do indivíduo, seja ele quem for, sujeito de direitos, que quando atingido pela lei penal, "só" perderia seu direito a liberdade de locomoção. Mas o sistema penal não age assim. Os Imperadores espalhados por aí o aplicam de forma a inflingir dor e somente isso ao selecionado. Este que assim o foi devido a um critério bastante curioso.
O direito penal como instrumento de controle passa a ser usado para selecionar seus clientes. A aplicação de uma legislação penal neo-liberal, com forte influencia dos anceios deste modelo econômico, e não poderia ser diferente, pois foram seus propulssores quem passaram a delimitar os rumos da sociedade, acaba transformando o direito penal como protetor de bens jurídicos mais relevantes apenas para a "sociedade". Mas quem é essa sociedade. A sociedade é compreendida apenas por aqueles que fazem parte do jogo, ou seja, apenas os consumidores, pois quem não é consumidor, não interessa para os que produzem e para os que vendem, logo, eles não fazem parte do time, não sociedade, então. "Ao lado da mão-invisível do mercado no âmbito econômico, há que se utilizar a mão-de-ferro do Estado no campo penal, para a contenção dos deserdados, excluídos, indesejados, não consumidores" (MORAIS DA ROSA). Desse modo fica fácil compreender quem são os nossos selecionados e fica fácil saber quem é a sociedade, famigerada "de bem", e quem é o resto. Mesmo sendo este resto a real manifestação social, pois eles é quem são a maioria. Mas, nem todo ano tem eleição e como não é só a "sociedade" que vota, vez ou outra é preciso dar um lanchinho a eles. Como diria Alexandre da Rosa, o lanche não é de graça.
Traçando apenas parte deste complexo contexto, e como forma de "limitação a intervenção punitiva e redução da irracionlidade (ou violência) da mesma" (ZAFFARONI) é que se faz imperativo um Direito Penal Constitucional, manifestando-se através do princípio da Intervenção Mínima, como uma maneira de contenção a aplicação irracional e perversa do direito penal. É a reposta ao nosso amigo lá do camburão, dizendo que mesmo que seja ética e moralmente reprovável sua conduta, a ele não cabe a aplicação do direito penal, não é passível de pena privativa de liberdade, devido a insignificância e falta de lesividade de sua conduta, pois o bem jurídico pretensamente atingido (patrimônio) não sofreu nem um arranhão. Não sei qual desfeixo teve a situação narrada, mas apenas por amor ao debate, aquele indivíduo jamais poderia ter em seu currículo a mancha que nem cirurgia a laser tira: a etiqueta penal. Essa é a real manifestação de um Direito Penal Democrático Constitucional e é o preço que se paga por viver em um Estado Democrático de Direito, diga-se de passagem, um preço finalmente racional, frente as consequencias que o encarceramento traria aquele indivíduo e a sociedade, pois a pena não cumpre seu caráter preventivo especial, pelo contrário, seria fato gerador de mais criminalidade.
Mas e aí, tudo fica por isso mesmo? Bom seria um juiz casca grossa que desse mesmo uma lição nisso aí (no agente). É meu camarada...jamais esqueça de perguntar: bom pra quem, cara pálida? Bom pra quem?
Que seja sempre analisada a racionalidade e os efeitos de todos os atos da vida humana, principalmente quando se trata de atos institucionalizados, como o direito penal.

Um comentário:

  1. "O direito penal como instrumento de controle passa a ser usado para selecionar seus clientes. "

    "mesmo que seja ética e moralmente reprovável sua conduta, a ele não cabe a aplicação do direito penal, não é passível de pena privativa de liberdade, devido a insignificância e falta de lesividade de sua conduta, pois o bem jurídico pretensamente atingido (patrimônio) não sofreu nem um arranhão. "

    Gostei bastante da certa subjetividade que o texto adquiriu. As duas partes acima foram destacadas pois para mim resumem de forma adequada o texto. A conduta moralmente condenável, também é insignificante. Poderíamos aqui analisar o que levou um ser humano a tentar roubar um "cadeado", provavelmente entraríamos no mérito psicológico e até mesmo social. Mas voltemo-nos a analisar a reincidência! Uma pessoa que perde seu Direito de ir e vir por conduta apenas moralmente reprovável, conviverá na cadeia com agentes muito piores e poderá sair de lá com a ética e moral muito mais afetada que já estava anteriormente. O Direito Penal Constitucional acertou em cheio ao aplicar o "princípio da insignificância". Caso contrário, a arbitrariedade com que é usado o Direito Penal tornaría-o, infelizmente, "arma" ao invés de "escudo". (como já vem acontecendo na prática apesar de na teoria sermos bastante racionais).

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